22 junho, 2010

Crítica literária em "Orgia Literária"

Escrito em 1928 e publicado no ano seguinte, O Som e a Fúria narra a decadência da família Compson de Jefferson, Mississipi. Uma decadência que é também a do próprio Sul dos Estados Unidos, pós guerra civil. Pois uma das forças da escrita de Faulkner é o facto de ao descrever uma situação, por mais prosaica que seja, existir sempre uma ressonância que está para lá do objecto concreto e entra no domínio do simbólico, isto é, as coisas, os lugares, as pessoas, são eles mas ao mesmo tempo são mais do que eles. Quando Benjy chora não é só ele que chora mas todo o ser humano.


Agora esteja caladinho – dizia ela, afagando-lhe a cabeça. – Esteja caladinho. A Dilsey está ao pé de si. – Mas ele chorava de mansinho, inconsolável, sem verter lágrimas; era o lamento desesperado e mudo de toda a miséria existente à face da terra.

Podemos encontrar esta mesma transcendência quase bíblica em Shakespeare e Melville, duas grandes influências para Faulkner e num escritor herdeiro deste, Cormac McCarthy.
A família Compson é composta pelo pai, Jason; pela mãe, Caroline e por quatro irmãos, Candy, Quentin, Jason e Benjy. Há ainda o tio Maury e a filha de Candy, também chamada Quentin. Os nomes são muito importantes em Faulkner e revestem-se de um significado especial, como uma herança que passa de geração para geração. Sintomático dessa importância é a mudança de nome do filho mais novo, Benjy. Inicialmente ele tinha o nome de Maury, como o tio, mas quando se descobre que ele nasceu com um atraso mental que lhe afecta a fala, dão-lhe o nome bíblico de Benjamin, como se quisessem, com essa acção, desfazer a linha de continuidade entre tio e sobrinho que a semelhança do nome consagrava e, com isso, separar simbolicamente Benjy da família. Não é por acaso que a ideia da mudança do nome vem da mãe, a personagem que está mais presa à herança genealógica da família.

Outra família acompanha os Compson ao longo do livro e funciona, de uma certa maneira, como o seu reflexo. É a família de negros que servem os Compson e cuja matriarca, Dilsey, é testemunha eterna da degradação dos brancos. Como ela diz no final, em jeito de revelação: “Vi o começo e agora vejo o fim.”

O romance divide-se em quatro capítulos, sendo os três primeiros narrados, respectivamente, por Benjy, Quentin e Jason; o último tem uma narração na terceira pessoa. Cada capítulo corresponde a um dia específico da vida das personagens, no entanto, através da moderna técnica literária da ‘corrente da consciência’, que Faulkner maneja com mestria, vários tempos se cruzam na narração ao sabor caótico dos pensamentos, emoções, memórias e obsessões dos narradores.

A família, o tempo, a fatalidade são os grandes temas de O Som e a Fúria. Em tempos uma família influente, a família Compson acaba desfeita pelo egoísmo, orgulho, ódio e ressentimento. No entanto existe lugar neste livro para o amor. Ele surge-nos essencialmente na extraordinária figura de Candy, uma personagem que apesar de só surgir em recordações alheias domina o romance. O amor que ela espalha e que perdura muito depois de deixar a família contrasta com o egoísmo da mãe e o ódio do irmão Jason. As saudades que Benjy sente dela são dos momentos mais tocantes. Vemo-la, ou melhor, percepcionamo-la como por entre um nevoeiro, a passar de criança a mulher e aprendemos a admirar-lhe o espírito, a coragem, o sacrifício. A sua saída de casa é prenúncio do fim.

O Som e a Fúria é um livro que requer uma certa predisposição do leitor. Não é um livro de leitura fácil nem a narrativa nos surge de um modo linear. Faulkner não facilita, atira-nos logo para o meio da história sem nos dar nenhuma informação prévia. O leitor passa a ser então uma espécie de detective apanhando pistas aqui e ali, juntando os fragmentos, montando o puzzle e aos poucos vai conseguindo extrair o significado do texto. Personagens e acontecimentos aparecem no início desfocados, envoltos em sombras, para a pouco e pouco irem tomando forma. O génio de Faulkner está no facto deste esforço não ser cansativo mas sim altamente recompensador e estimulante. O último capítulo revela o que até aí tínhamos apenas intuído. 

Durante os primeiros capítulos o leitor habita a cabeça de três pessoas completamente diferentes, de repente o mundo alarga-se e as formas aparecem com toda a nitidez.
O início é soberbo e está só ao alcance dos melhores. Benjy é um idiota cujo relacionamento com o mundo se faz sobretudo através de sensações: as cores; as luzes; o cheiro das árvores; o som da chuva. Aos trinta e três anos tem a idade mental de três. Com outro escritor talvez a identificação com uma personagem como esta fosse difícil. Mas não com Faulkner. Não só o leitor sente profundamente todo o sofrimento de Benjy como se fosse seu mas também ganha uma outra compreensão para as pessoas com este tipo de deficiência. É que por umas páginas nós somos essas pessoas. Nós sentimos como é ficarmos parados no tempo, sempre os mesmos, enquanto tudo à nossa volta se desenvolve, transforma e decai sem termos consciência disso. No extremo oposto a Benjy está Jason, um poço de ódio, egoísmo e ressentimento sem disfarces. Cru na sua maldade, medíocre na sua frustração, impotente na sua raiva.

Para terminar, uma palavra para a nota introdutória, desta edição, da autoria de António Lobo Antunes. Apesar de pequena ela é importante porque fornece pistas na abordagem ao texto que são essenciais para uma entrada mais suave no livro. Como diz Lobo Antunes: “O Som e a Fúria possui a qualidade de ser um romance que, tal como a grande poesia, se relê no maravilhamento da descoberta: a todo o passo damos com pormenores que nos haviam passado despercebidos, em cada página nos emocionamos.”

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